Fez-se actriz à entrada da adolescência. Emendou um espectáculo atrás do outro. Há cinco anos, sofreu um esgotamento. Abandonou os palcos. Agora, regressa com “Zambézia, 2061: La Cité de la Grande Revolution”. Eis Lucrécia Paco a revisitar 30 anos de carreira e muito mais de vida. Depois de uma manhã de chuva tímida, o sol começa a transpor as nuvens cinzentas. A conversa já vai longa, então notamos que para entender Lucrécia Paco (n. 1969) não devemos ficar atentos apenas às palavras, porque não é através delas que lhe percebemos o sentimento. É a partir dos gestos e do tom da voz que lhe sentimos a cólera, o encanto e o desencanto em relação aos episódios que recorda. O encontro estava inicialmente marcado para a Associação dos Escritores Moçambicanos. Mas porque a actriz cuidava duma sobrinha e a secretária do lar estava ausente, encontramo-nos na sua casa, um flat no bairro Central, onde vive com o marido que a fez “redescobrir o gosto pela vida” e o filho mais novo. Na sala, marcada por uma mobília de palha, destaca-se um piano. Pouco antes da nossa chegada, disse-nos a actriz, dedilhava-o. Lamentamos não ter chegado a tempo de ouvi-la. Mas como quem queria dizer que perdemos nada, Lucrécia disse que não toca, tocarola. O mesmo que faz com batuque, mbira, ubongo - que também vemos na sala. “São para expressar meus estados de espírito”. À mesa, em que nos sentamos para conversa, vemos o texto “Zambézia, 2061: La Cité de la Grande Revolution”. As primeiras folhas sofridas eram prova do exercício de memorização que fazia a actriz trocar o dia pela noite, enquanto não chegava o dia de ensaio no palco. Há-de ser, este por estrear, um monólogo musicado, com sopro e percussão. Isto, se a olharmos por fora. Por dentro, está pejada de significado. Desde logo, pelo título. O espectáculo quer ser mais do que a celebração de um rio ou de uma região, quer ser a celebração do passado, de toda uma África, de todo um povo. É ainda, o regresso às raízes como trampolim para o futuro, para uma grande revolução, não ao som das armas, mas animada pelas artes, afinal, são os artistas os construtores do futuro. É o sonho duma África em 2061, emancipada intelectualmente. O texto é de Alan Kamal Martial, autor entre nós conhecido por “Epílogo do Ventre” e “Mulher Asfalto”, textos também trabalhados por Lucrécia. A estreia está marcada para 15 de Março, no Centro Cultural Franco-moçambicano. Será o ponto de partida, pois se quer um trabalho contínuo representado nos quatro cantos do mundo e em diferentes idiomas. Esta primeira apresentação, inserida na Semana da Francofonia, será feita em francês, um idioma que chega a vida de Lucrécia ainda na infância. “Meu pai gostava de exibir-se com uma e outra palavra”. Esta é a primeira memória que tem, mas depois decide fazer o curso, ainda sem pensar que pudesse actuar em francês. Quando a ficção imita a realidade “Zambézia, 2061: La Cité de la Grande Revolution” marca a volta de Lucrécia aos palcos, depois de uma paragem por 5 anos. “O Regresso da Velha Senhora” foi a última vez que esteve em cena e foi também o mote do seu período sabático. Mas o esgotamento começa a ganhar corpo na peça “A Filha do General”, ano antes. Este trabalho retratava um período conturbado da História de Moçambique, a Guerra Civil. Lucrécia faz a protagonista, a filha que perde o pai em nome da guerra. E a verosimilhança convoca para a actriz velhos traumas. Perdera ela também o pai, não propriamente em nome das armas, mas em nome das limitações que as armas impuseram ao país como um todo, na guerra dos 16 anos. Ano depois, em “O Regresso da Velha Senhora” a ficção volta a imitar a realidade, um passado traumático e, porque entre o personagem e a actriz não existe uma cortina de ferro, Lucrécia vê os velhos fantasmas regressarem. A peça abordava muitos temas que lhe eram familiares como parte de um país que via a repetição da História. A Velha Senhora era, afinal, uma metáfora que prenunciava a volta de um velho tempo, um reabrir de feridas que fazia confusão à cabeça da actriz. Novamente a guerra, vivia-se a instabilidade militar e todos os problemas por ela trazidos. “A peça entrava em choque comigo”. Depois da peça, não pôde mais continuar. Afastou-se dos palcos, mas não da arte. Vimo-la assinar a encenação de “Epílogo do Ventre”. Mas já lá vamos. Antes, a infância. A alegria, as privações e a rebeldia Continuamos a recuar no tempo. E é com um sorriso no rosto, gestos leves, e um tom de voz com um quê de infantil que começa a falar dos tempos de criança, das brincadeiras, no Bairro do Aeroporto, subúrbio da Cidade de Maputo. Já nestes tempos, olhava maravilhada aos homens que dançavam, nas actividades do bairro, e também ela se lançava para as rodas ao som da timbila. Desta infância, lembra também das figuras e dos mitos que criavam e faziam a norma. “Bastasse alguém gritar ′ah xigongomana′, todos deviam estar em casa”. Lembra-se também do homem do Xitivila que fazia a recolha dos impostos. “O primeiro branco que vi na vida”, sorri. Mas logo se exaspera, quando fala das restrições que caracterizavam aquele período. Fazia-lhe confusão o confronto entre aquilo que era o seu espaço de convivência e a escola. Afinal, o que fazia o dia-a-dia dela no bairro, era expressamente proibido no espaço escolar, não entendia as dicotomias. “Não entendia porquê em casa me chamavam um nome e na escola outro. Porquê em casa podia falar ronga e na escola não. Porquê em casa podia dançar coisas nossas e na escola não. Porquê do nosso lado era só areia, mas do outro lado havia balouços”. É já nesta época que olha a arte, especificamente a dança, como uma forma de rebelar-se contra o estado das coisas. Dançava os ritmos proibidos, como forma de expressar o desagrado ante ao sistema. “Usei sempre a arte como uma forma de libertação”. Felizmente, conta a actriz, não viveu as privações por muito tempo. Logo se dá a independência. Ela passa a viver no bairro Central. E, como aluna da Escola Primária da Maxaquene, integra os grupos das actividades culturais. Descobre, para época, aquilo que se chamava a nova poesia moçambicana. “Declamava a poesia de combate, para exaltar a independência”. São estas experiências da infância que a transformam. A primeira vez, um início discreto É Lucrécia uma menina de 13 anos, na plateia do Teatro Avenida, a assistir “Xiluva” do Txova Xitaduma. Ali, entende que com o Teatro podiam ser mudadas as mentes, o mundo e que o palco também podia ser um espaço de exorcismo. “A peça era bastante crítica ao estado das coisas. Abordava uma série de questões que me fizeram perceber a nobreza desta arte”. Deslumbra-se, conta, pela actriz Ana Magaia. Toma-a como referência e sonha também com um lugar no palco. Um sonho que era só dela. “Eram tempos difíceis”, recorda, e toda a gente aspirava ser hospedeira para poder viajar e trazer algumas coisas de tantas que faltavam na época. O sonho começa a ganhar vida, em 1986, quando sabe de um casting para interpretar uma menina em “A Revolta da Casa dos Ídolos”, numa peça do Tchova Xitaduma. Os testes eram leitura, representação, canto, dança. Coisas que a menina Lucrécia fazia naturalmente. “Entrei no casting para fazer parte do grupo”. E fez. Sentiu o habitual “frio na barriga”, que ainda hoje sente, antes de entrar em cena. Mas a entrada em palco foi um rebentar de algemas. “A arte tem esta coisa que me liberta”. Lembra da personagem, sem nome, apenas rapariga, sem muita voz, sem muito texto. “Mas foi uma realização”. O primeiro bloco de uma carreira que se faz longa. Logo depois, integrou o elenco de “A Boa Alma de Setsuan”, no mesmo grupo. Nesta segunda peça, ainda distante do protagonismo, faz uma combinação de pequenos papéis. De Hobby à Profissão e o primeiro personagem marcante Nos primeiros anos, Lucrécia tem o Teatro em segundo plano. É coisa para os tempos livres, apenas hobby. No entanto, aos 15 anos, decide assumir a arte como profissão ao integrar a primeira Companhia Profissional, Mutumbela Gogo, e representar de forma continua. Os pais olham esta aposta com renitência. Não acreditavam ser possível um lugar para o Teatro em Moçambique. Queriam a filha numa área de actividade diferente. Manuela Soeiro, cicerone desta expedição, garantiu-lhes que era possível. A condição, impuseram os pais, talvez para prevenir arrependimentos, foi que a filha continuasse os estudos. E assim foi. Tem, a actriz, uma Licenciatura em Literatura e Linguística por defender. Hoje, quando olha para trás, apesar de reconhecer que a arte é um caminho espinhoso, não se arrepende de tê-la escolhido. “Nós nascemos para aquilo que somos. Com o teatro aprendi a ser livre, a conviver com o diferente, a respeitar o ser humano”. A primeira peça do Mutumbela foi “Qual é a Coisa Qual é Ela”. Era sobre medos e dirigida para um público infantil. O primeiro grande papel chega-lhe, ano depois, em “Nove Hora” baseada no poema de Rui Nogar. Não era ainda a protagonista. Mas foi um personagem que a marcou. “Em cada trabalho é preciso encontrar o seu gozo, a fome de querer fazer e fazer bem. É mais neste processo de satisfazer a fome que se encontra a realização do que quantas vezes entramos em palco, quanto tempo estamos em cena”. Neste trabalho dá-se a primeira grande transformação, da actriz para o personagem. “Era um personagem distante daquilo que era o meu eu”. Desde logo pelo género, era masculino. “Foi um trabalho que me tirou o sono, mas ao mesmo tempo alimentou-me”. Lucrécia fazia o moleque, era só esse o nome, tanto esse, porque era um personagem real no período colonial. A composição exigiu um trabalho de pesquisa aprofundado. Foi buscar a experiência na memória dos que o viveram na pele. Seguiram-se outros personagens marcantes. Deu vida a mais de 45. Mas um - logo um trabalho - incontornável na sua carreira é a prostituta no monólogo “Mulher Asfalto”. O texto nasce do real. A actriz estava com o autor Alan Kamal, em Antananarivo, Madagáscar, quando assistiu ao brutal espancamento duma prostituta por um polícia. A mulher caía no chão, levantava, caía, levantava, sem deixar de falar, querendo falar, exigindo falar. Alan escreveu o texto, Lucrécia deu vida. A peça é isto: uma prostituta com uma arma apontada à cara, tempo antes de morrer, que se nega a condição de silêncio, a condição de não vida. É um trabalho sobre o direito à voz duma prostituta, mas que amplifica a voz de todos os grupos marginalizados. “Falam os políticos, os académicos, os sociólogos, mas o operário, quase nunca tem direito à fala”. Actriz, também encenadora É quase um destino-comum actrizes e actores vestirem a pele de encenador(a). Talvez porque a sua base de trabalho nas peças se fundamenta na criação colectiva e isto faz com que o lado da encenação desponte. “Neste acto de trocas directas com actor a propor algumas coisas no processo de produção, cresce o ‘bichinho’ da encenação”. Lucrécia faz-se encenadora, pela primeira vez, na adaptação do romance “Niketche: Uma História de Poligamia” de Paulina Chiziane. Mas conta que a encenação não é propositada. Não vai ao livro querendo levá-lo ao palco. “A medida que lia o texto via as personagens ganharem vida”. Então quis trazer as vozes daquelas mulheres. Mas não apenas para discutir a condição delas, mas a condição das pessoas na sociedade. Outras encenações seguiram-se, “Último Voo do Flamingo” e “Mulher Asfalto” incluídas. Há poucos anos, rompeu o período sabático, com a encenação de “Epílogo do Ventre”. Um espectáculo que queria discutir o aborto clandestino, numa altura em que o debate sobre o tema estava em voga. A peça era uma forma de alarga-lo. “Achei oportuno trazer esta peça”. É, desde sempre, isto que encanta Lucrécia no Teatro, textos contundentes, temas actuais, que levam as pessoas a olharem para dentro de si. “O Teatro como meio de intervenção social”. Mas a actriz não entende a intervenção social enquanto dizer apenas como as coisas seriam melhores, apontar os erros. Tem de ser sempre a metáfora a levar-nos à realidade. “O teatro ainda que seja socialmente comprometido não pode descuidar do carácter estético da arte”. Cinema? Um pouco. Vive mais no palco Ainda no início da carreira, Lucrécia lança-se para uma aventura cinematográfica, “O Vento Sopra do Norte” (1986), mas só voltou ao cinema, volvidos 20 anos, em “Quero Ser Uma Estrela”. Pouco depois integrou o elenco da primeira produção novelística do país, “Nineteens”, onde fazia a protagonista. Em frente a tela termina-lhe, aqui, o curriculum. De “Nineteens” fica uma história, o experimentar da primeira produção novelística do país, o fazer com pouco budget. “Em termos de produção não tínhamos grandes meios”. Mas nunca mais se propôs fazer um casting para estar em frente às câmaras. “O palco é mais vivo para mim. Sou mais actriz de palco do que da tela. Talvez porque não domine a técnica do cinema”.
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