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“A restituição serve melhor a quem souber conservar o objecto”

“A restituição serve melhor a quem souber conservar o objecto” A LITERATAS traz alguns aspectos bastantes discutidos no seminário “Restituição do património cultural a Moçambique: história, realidade e utopia”

Num momento em que muitos discutem a restituição do património cultural na perspectiva de os antigos países colonizadores devolverem aquilo que pilharam às antigas colónias, a historiadora Kátia Filipe traz uma abordagem contrária. Segundo ela, a restituição deve ser abordada no ponto de vista de troca dos produtos culturais, uma vez que as colónias também foram beneficiadas pelo património cultural Ocidental, na mesma perspectiva do colonialismo.

“Creio que a restituição deve ser vista na perspectiva de quem pede a sua devolução e do que pode dar (...) o debate da restituição não é recente, vem dos finais da I e II guerra mundial. Os bens foram tirados no período colonial, por questões políticas”, explica a historiadora.

Kátia Filipe é a favor da restituição do património cultural moçambicano, mas não fecha os olhos perante uma realidade sensível e triste. Segundo a historiadora, Moçambique pode não estar em condições de conservar os objectos culturais pilhados e, neste caso, é melhor que este património não retorne a sua terra de origem.  

“Se um objecto está bem conservado no estrangeiro, por que trazer a Moçambique? Se um objecto está bem conservado naquele sítio, esteja nesse mesmo sítio. A restituição serve melhor a quem melhor conservar o objecto”, remata.

Ao defender que o património pilhado deve retornar ao seu país de origem, a historiadora Kátia Filipe não comunga que seja imperiosa a sua devolução, sendo ideal que o país negocie a restituição dos bens pilhados, enquanto cria condições para melhor conservação dos mesmos.

“Não há imperiosidade, tendo em conta a nossa situação museológica. Os museus africanos foram obrigados a reinventar-se, não estavam preparados, é o que Moçambique deve começar a pensar”, explica a Kátia Filipe, avançando que, enquanto são garantidas as condições, melhor é que este património continue “em Portugal, bem preservado”.

Para a historiadora Kátia Filipe, os objectos culturais reivindicados fazem parte da identidade de Moçambique, por isso, enquanto as condições para a sua restituição são criadas, deve haver alternativas para que a nova geração entre em contacto com o mesmo material. Uma das soluções, avança Kátia Filipe, seria a aposta pelas novas tecnologias que, graças a elas, mesmo a distância, esse património “pode ser visualizado”.

Kátia Filipe apela à paciência e explica que a restituição deve ser uma negociação faseada e feita com calma. Lembra que certas nações encontram-se neste processo há muitos anos. “Há países que estão nesta situação de restituição há vinte anos, então Moçambique não vai dormir e acordar com as coisas restituídas”.

 

“Foi-nos tirada a dignidade”

 

Para a conceituada escritora moçambicana, Paulina Chiziane, é imperioso restituir o património africano e moçambicano, pilhado durante o tempo colonial, à sua terra de origem. Entretanto, mais do que restituir, o mesmo património deve ser resgatado.

Paulina Chiziane refere que, apesar de sensível e importante, a restituição é muito ignorado por actores sociais, que não debatem questões essenciais sobre continente africano, limitando-se a discutir assuntos supérfluos.

“Não falamos de muitos aspectos que dizem respeito à África, quando se trata de identidades, fala-se de gastronomia, dança e moda, como se ser africano fosse apenas vestir e comer, o que nos leva ao pensamento colonial, que sustenta que o africano só gosta de comer, vestir e dormir”, lamenta.

É com essa passividade que Paulina Chiziane não se conforma, convicta que, os africanos sentem-se ameaçados quando abordam assuntos culturais sensíveis, pois “quando chega a hora de falar de cultura todos têm medo, porquê? É preciso que haja restituição e resgate”.

Segundo Paulina Chiziane, urge restituir e resgatar o que foi pilhado de África. “As bandeiras já devolveram, mas foi-nos tirada a dignidade, tirada como animais e não sei se vão restituir”, disse.

Na sua abordagem, a escritora de “O canto dos escravos” – o qual desabafa que muitos fingem que não existe - explica que o resgate inclui a devolução de bens e da dignidade, ambos pilhados pelo Ocidente. Nesta linha, a escritora lamenta que, mesmo depois da era da escravidão e do colonialismo, a arte conserve uma visão distorcida sobre o continente africano. “Como o negro é tratado na literatura? É aquele que não pensa, não tem alma e deve ser escravizado! A academia e literatura deviam restituir a humanidade”, esclarece Paulina.

A escritora não esconde a sua decepção em relação ao poder político moçambicano, do qual não espera grandes soluções mas, mostra-se optimista (nem tanto) quanto ao papel das academias africanas no resgate da sua africanidade. Para Paulina Chiziane, o Seminário “Restituição do património cultural a Moçambique” é por si um passo por destacar.

Segundo Paulina Chiziane, Moçambique cometeu erros históricos, dos quais o facto de não dar continuidade ao legado deixado pelo primeiro presidente de Moçambique Independente, Samora Machel, que “foi resgatar ossos de Ngungunyane, que foi roubado” pelos portugueses. Assim também, toda a África parece esquecer que o património que se pretende recuperar deve ser identificado voltando ao passado. “Os escravos deixaram um património, que nós devemos o resgatar e reconhecer. A descolonização deve ser permanente. Há tendência de nos perdemos porque estamos globalizados”, explica.

Para Paulina Chiziane, a luta continua e deve ser paciente, faseada, como nos tempos da opressão. “A repressão levou séculos e a restituição da África levará muitos séculos. Quando algo nos aperta, pensamos que a solução deve ser imediata, mas leva séculos”, fechou.

 

“O património africano é intangível”

 

A historiadora e professora, Matilde Muocha, refere que o património africano é, acima de tudo, intangível sendo que a sua restituição não deve beneficiar apenas às elites intelectual e política.

Para a historiadora, urge quebrar as barreiras da automação e crises de identidade dos moçambicanos. “O resgate deve ser encarado como a necessidade de quebrar o ciclo de autonegoção cultural resultante do contexto colonial, onde tivemos autonegação para entrar no sistema por via da simulação”, afirma.

Matilde Moucha avança que a autonegação é a primeira grande barreira dos moçambicanos. Neste caso, a aceitação cultural deve seria uma conquista imaterial, mas com impacto no património material. “A génese do património cultural não está na materialidade que reivindicamos para colocar nos museus, que são instituições que não usamos”, refere.

Para a professora Matilde Muocha, o património africano é intangível e vai mais além do que se pode ver e tocar, sendo isto que a África deve preocupar-se, primeiramente, em recuperar. “O património africano é intangível, a componente tangível ganha significado quando colocado em momentos intangíveis”, disse.

Matilde Muocha explica que se a África recuperar, em primeiro, os objectos culturais pilhados, estará dando um passo a frente e dois atrás, visto que a não se pode simplesmente ignorar a componente intangível, afinal, “vamos dizer que estes artefactos são a construção da identidade moçambicana, mas vamos entrar na educação”, considera.

Apesar de considerar necessária a restituição, Matilde Moucha concorda que há assuntos básicos que devem ser observados, dentre eles, alguns erros históricos, justificam os debates sobre a restituição e identidade. “Antes da restituição, olhemos em como fomos nos construindo como nação e os eventos do novo mundo, onde vamos e na desconstrução de conceitos”, conclui quem assim fala sem esquecer de lembrar que a história foi construída de maneira a beneficiar os seus narradores.

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